quinta-feira, 25 de outubro de 2007

CAPÍTULO XIII_Penumbras

Só faltava o mundo desabar em cima da sua cabeça. Aonde daria essa história envolvendo a chave? Como o velho podia saber, e como adivinhava o motivo do menino estar ali? Bargapo parou com o que estava fazendo na oficina. Encostou a escada no chão e virou-se para Zeh.

- Esqueça esses papéis aí, meu rapaz. Vou cancelar a entrega de hoje para conversar com você.

Zeh não estava compreendendo muito a voz rouca do velho. Mas, como ele tinha largado a escada, fez o mesmo com os papéis. Bargapo tinha trabalhado dias para entregar a escada no centro, até passando a última noite acordado para finalizar o serviço.

- Vou pedir alguém para avisar que não poderei fazer as entregas hoje. Falarei que estou doente. Eles compreenderão. Só quero que entenda que eu não deveria lhe ajudar nessa “empreitada”. Seu pai deixou isso bem claro pra mim.
Mas já estou farto disso.

Mais uma vez o menino viu Bargapo virando as costas. O velho tirou a toalha molhada do pescoço e a jogou em cima de uma mesa localizada ao lado da interminável escada. Zeh sentou-se novamente, teria que esperar Bargapo voltar, para então, tentar entender o que estava acontecendo.

- Onde estou me metendo? - Sussurrou com a voz baixa.

A oficina foi tomada pelo silêncio irritante. Ele podia ouvir sua respiração, que acelerava enquanto o tempo passava. Zeh lembrou que havia deixado a chave em casa, dentro da gaveta da escrivaninha. Da oficina até a sua casa daria uns 10 minutos, se fosse correndo. Abriu a gaveta e começou a procurar por algo. Estava pensando em escrever para o velho enquanto buscava a chave. Dois minutos depois de vasculhar a gaveta, viu embaixo da mesa onde Bargapo havia jogado a toalha suada uma caneta metálica. Foi até lá. Voltou, arrancou um pedaço de papel e escreveu: “Fui pegar a chave”.

Saiu correndo da oficina. Nem pensou em fechar a porta ou arrumar toda a bagunça que deixou por lá. Só olhava pra frente. Até chegar à Vila Amargo, ele teria que atravessar uma ponte meio podre alguns metros depois da casa de Bargapo e correr pela terra molhada da chuva do dia anterior. O caminho não era complicado. A intenção do velho não era se esconder da Vila, e sim manter-se um pouco afastado de alguns moradores. Ele tinha seus motivos pessoais. Zeh correu mais e mais. Sua camisa estava molhada e um pouco amarrotada. Chegando à Vila, algumas pessoas o viram correndo. Estavam achando estranho, o menino não era agitado. Mais uns 30 metros e entraria em casa, escondido, para pegar a chave dentro do seu quarto. A porta estava aberta, um pouco encostada. A janela da direita, sem a cortina amarela, Dona Pertídia fazia as arrumações de costume. Estava escuro, mas podia ver as penumbras de dois corpos em pé lá dentro. Foi se aproximando, enquanto a luz era acesa. Pôde reconhecer o cabelo marrom amarrado da mãe e a careca brilhante do velho Bargapo.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

CAPÍTULO XII_Cadê a bendita chave?

Bargapo entrou na oficina. Olhava para Zeh enquanto passava a toalha sobre a cabeça, enxugando os poucos fios de cabelo, ainda molhados. Mais uma vez o menino se encontrava com uma cara de besta, diante do sorriso sádico do velho. Tudo que queria era estalar o dedo e sumir da oficina. Seu rosto ainda estava quente pela vergonha que estava passando.

- Não esquente. meu rapaz. Essas coisas acontecem. Não foi a primeira vez. Quando esse galpão ainda estava na lista de oficinas para aprendizagem dos alunos da Vila, toda semana eu dava um flagra assim. Meninos são curiosos.

Zeh puxou a cadeira ao lado da escrivaninha e sentou-se. Colocou os cotovelos sobre os joelhos e as palmas das mãos sob o queixo. Queria prestar atenção no que o velho estava dizendo. Sentia-se mais calmo. Bargapo sabia como fazer uma pessoa se sentir aliviada. Tinha aparência de durão, mas era muito simpático. Aquele tom rouco da voz lhe fazia bem. O velho continuou.

- Também já fui muito curioso, quando jovem. Acho a curiosidade fantástica. Mas só vale a pena quando é usada para coisas boas, como aprender e descobrir coisas novas. Quando os alunos chegavam aqui, viviam mexendo nos meus bagulhos. Eu até entendia. O povo lá de fora tem muito papo furado, dizem o que não sabem ao meu respeito. Criaram uma lenda, acho que é isso.

- É verdade. Dizem muitas coisas. Mas não estou aqui por causa de lendas. Sei que você foi muito amigo do meu pai. Ele gostaria de me ver aqui.

- Sim, seu pai era um irmão pra mim. Me ajudou várias vezes. Juntos, descobrimos muitas coisas. Pode ter certeza que a nossa curiosidade foi usada para aprender.

Pela primeira vez no dia, havia um diálogo na oficina. Os dois passaram alguns minutos jogando conversa fora. Logo depois, Zeh voltou à guilhotina para terminar sua tarefa. Bargapo foi para o outro lado finalizar a escada que entregaria de tarde.
Ficaram em silêncio, concentrados. O velho não se agüentou, ele sabia do menino mais do que imaginava.

- Você sabe que tem muito mais pra descobrir aqui, meu rapaz. Seu pai era um gênio, você está me saindo a cópia. Trouxe a bendita chave?

Zeh parou de cortar o pedaço de folha pela metade e levantou a cabeça. A mão ainda segurava a régua afinada.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

CAPÍTULO XI_A escrivaninha

Depois das últimas palavras do velho martelarem em sua cabeça, Zeh olhou firme até enxergar o ombro largo sair do galpão e passar pelo lado de fora da janela, à sua esquerda. Não pensou em mais nada. Olhou tudo ao redor, procurava por algum armário, baú ou estante que pudesse começar a vasculhar uns papéis. Apesar de ser uma serralheria, a oficina estava bem arrumada. Bargapo era um velho organizado, além do grande capricho que tinha com seus trabalhos, pregava também pela organização da oficina. Zeh suava. O medo de ser visto mexendo nas coisas poderia acabar com qualquer plano. Mais próximo, perto da guilhotina, uma escrivaninha igual a do seu quarto, começaria por ali. Eram duas gavetas pequenas na parte de cima e mais quatro gavetas com a largura do móvel em baixo.

Achou que se começasse por baixo poderia achar mais rápido o que queria. Colocou as duas mãos nos puxadores e abriu pela metade a gaveta do móvel marrom escuro. Tudo ali tinha poeira. Quanto tempo fazia que o velho não abria aquela gaveta?
No interior, muitos desenhos antigos, rascunhos, alguns lápis velhos e uma régua metálica de um tamanho exagerado. Percebeu que ali não encontraria nada. Levantou um pouco a coluna e puxou a penúltima gaveta, a de cima e a primeira gaveta grande. Estavam todas vazias. Só lhe restava as duas gavetas menores. Não acreditava que poderia encontrar algo de um jeito tão óbvio assim. Era teimoso, não ia desistir. Puxou as duas gavetas de uma só vez. Na esquerda, uma caixa preta, alicates, chaves de fenda de todos os tamanhos e alguns parafusos. Olhou para a direita. Algumas contas, mais papéis.

Ficou intrigado com a caixa preta. Tirou-a da gaveta e a apoiou na escrivaninha. Estava fechada, teria que procurar alguma forma de abrir aquela caixa. Não estaria fechado sem motivos. Pegou uma chave de fenda para arrombar a caixa preta, decorada com couro. Enfiou a ponta entre as duas partes, nada da caixa abrir. Foi do lado esquerdo até o direito passando a ponta entre a parte de cima e de baixo da caixa. Do lado direito, um botão branco, como um interruptor de luz. Apertou, ouviu um estalo. A parte de cima subiu ligeiramente, estava ansioso para abri-la. Dentro da caixa, mais uma pegadinha do velho. Tinha um papel, aquele mesmo papel que Bargapo usava como rascunho. Ele leu.

“Meus banhos não costumam ser demorados”.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

CAPÍTULO X_Fique à vontade

Zeh não estava ligando para nenhuma dessas máquinas. O que ele queria ver ainda não tinha avistado em nenhum canto da oficina. Com toda aquela ansiedade de chegar cedo no trabalho, ele esqueceu em casa a chave que estava na caixa do presente. Quando passou os dedos pelos bolsos e percebeu que estavam vazios, colocou a mão aberta no rosto, lamentando.

Não fazia muito tempo, Zeh ouviu do seu quarto a mãe reclamando que havia perdido a chave pela Vila. Depois de alguns minutos, abriu a porta e espiou atrás das cortinas da sala o velho lá fora falando com sua mãe. Pendurado nos dedos em uma das mãos do Bargapo, estava um molho de chaves, na outra, um caderno que era folheado com cuidado página por página. Ficou mais algum tempo olhando, até que o velho apontou com o dedo indicador para uma das folhas do caderno de anotações. Em seguida, a mãe juntou as palmas das mãos e as balançou, feliz por ele ter encontrado. Zeh concluiu que era o velho quem tinha os registros das chaves da Vila, afinal, era o único que trabalhava com ferros por ali. Por que não ser também o único chaveiro?

No dia em que resolveu abrir o presente e ler a mensagem do pai no chaveiro, não demorou muito tempo para lembrar daquele episódio da mãe pedindo ao velho uma nova chave. Ligou o objeto ao fato, só tinha uma saída. Se aquela chave estava na sua caixa de presente, quem a fez foi Bargapo. Só ele poderia saber qual era a utilidade da chave, para qual tipo de fechadura ela foi feita e onde encontrá-la. Parte do plano já tinha sido executada, já estava ali, dentro da oficina. Precisava conquistar a confiança do ferreiro, ou então resolver por conta própria, vasculhando os arquivos em algum lugar do galpão.

Bargapo lhe deu dois rolos de papel, para que ele cortasse, em tamanhos iguais, algumas folhas para serem usadas de rascunho. Era um serviço fácil, para um primeiro dia de trabalho.

- Corte o dois rolos, pode ser deste tamanho. Levante a guilhotina, segure aqui com uma mão, coloque o papel e abaixe com força. Não é difícil.

Entregou na mão do menino um modelo do tamanho de rascunho.

- Preciso lavar o rosto e tomar um café bem quente, quer alguma coisa meu rapaz?

Zeh só balançou a cabeça negativamente.

- Volto em alguns minutos, fique à vontade. Só tome cuidado para não se machucar.

“Fique à vontade”. Ele teria algum tempo para procurar o caderno.