terça-feira, 20 de novembro de 2007

CAPÍTULO XIV_Pulo do gato

Zeh estava se sentindo traído. Fechou os olhos e explodiu em um grito.

- Filhos da puta!

Por sorte, nem Dona Pertídia nem Bargapo ouviram o palavrão pelo lado de dentro da casa. Continuaram ali, debaixo da luz da sala e atrás da janela aberta, sendo vigiados pelo menino. A mãe de Zeh entregou alguma coisa para o velho, que analisou por alguns instantes, enquanto ela falava. Bargapo devolveu para Dona Pertídia e logo em seguida sentou-se.
Zeh não sabia se era uma boa idéia continuar observando o que ia acontecer, ainda mais quando lembrou da caixa que esqueceu em seu quarto.
Agachou-se um pouco mais e andou lentamente para a esquerda. Resolveu ir até o seu quarto. Andou por 1 minuto, até chegar debaixo da janela. O sol abria mais e mais. Depois da chuva do dia anterior, o calor era escaldante.

Ainda abaixado, colocou a mão direita no para-peito, olhou para cima e viu pelo menos uma parte da janela de madeira, pintada de azul. Ela estava aberta.
Levantou-se e em um "pulo de gato" já estava dentro do seu quarto. Lembrou por um momento que a chave estava na gaveta. Enquanto isso, na sala, os dois continuavam conversando. Antes de qualquer coisa, correu para a porta do quarto para olhar mais uma vez o que Dona Pertídia e Bargapo estavam fazendo lá dentro. A porta estava aberta pela metade. Empurrou um pouco mais para o quarto, a única coisa que conseguia enxergar na sala era o ombro direito da mãe, que estava na frente de Bargapo, ainda sentado.
Esperou alguma reação dos dois e então Dona Pertídia se virou e colocou em cima da mesa uma gaveta. Zeh se viu perdido.

- Pronto! Pegaram tudo.

A chave já está na mão do velho, pensou.
Saiu da porta, voltou e olhou para o seu móvel. Gelou ao ver que do lado esquerdo, na parte de cima da escrivaninha, faltava uma gaveta. Mas ele sabia que nem tudo estava perdido, nem tudo.

quinta-feira, 25 de outubro de 2007

CAPÍTULO XIII_Penumbras

Só faltava o mundo desabar em cima da sua cabeça. Aonde daria essa história envolvendo a chave? Como o velho podia saber, e como adivinhava o motivo do menino estar ali? Bargapo parou com o que estava fazendo na oficina. Encostou a escada no chão e virou-se para Zeh.

- Esqueça esses papéis aí, meu rapaz. Vou cancelar a entrega de hoje para conversar com você.

Zeh não estava compreendendo muito a voz rouca do velho. Mas, como ele tinha largado a escada, fez o mesmo com os papéis. Bargapo tinha trabalhado dias para entregar a escada no centro, até passando a última noite acordado para finalizar o serviço.

- Vou pedir alguém para avisar que não poderei fazer as entregas hoje. Falarei que estou doente. Eles compreenderão. Só quero que entenda que eu não deveria lhe ajudar nessa “empreitada”. Seu pai deixou isso bem claro pra mim.
Mas já estou farto disso.

Mais uma vez o menino viu Bargapo virando as costas. O velho tirou a toalha molhada do pescoço e a jogou em cima de uma mesa localizada ao lado da interminável escada. Zeh sentou-se novamente, teria que esperar Bargapo voltar, para então, tentar entender o que estava acontecendo.

- Onde estou me metendo? - Sussurrou com a voz baixa.

A oficina foi tomada pelo silêncio irritante. Ele podia ouvir sua respiração, que acelerava enquanto o tempo passava. Zeh lembrou que havia deixado a chave em casa, dentro da gaveta da escrivaninha. Da oficina até a sua casa daria uns 10 minutos, se fosse correndo. Abriu a gaveta e começou a procurar por algo. Estava pensando em escrever para o velho enquanto buscava a chave. Dois minutos depois de vasculhar a gaveta, viu embaixo da mesa onde Bargapo havia jogado a toalha suada uma caneta metálica. Foi até lá. Voltou, arrancou um pedaço de papel e escreveu: “Fui pegar a chave”.

Saiu correndo da oficina. Nem pensou em fechar a porta ou arrumar toda a bagunça que deixou por lá. Só olhava pra frente. Até chegar à Vila Amargo, ele teria que atravessar uma ponte meio podre alguns metros depois da casa de Bargapo e correr pela terra molhada da chuva do dia anterior. O caminho não era complicado. A intenção do velho não era se esconder da Vila, e sim manter-se um pouco afastado de alguns moradores. Ele tinha seus motivos pessoais. Zeh correu mais e mais. Sua camisa estava molhada e um pouco amarrotada. Chegando à Vila, algumas pessoas o viram correndo. Estavam achando estranho, o menino não era agitado. Mais uns 30 metros e entraria em casa, escondido, para pegar a chave dentro do seu quarto. A porta estava aberta, um pouco encostada. A janela da direita, sem a cortina amarela, Dona Pertídia fazia as arrumações de costume. Estava escuro, mas podia ver as penumbras de dois corpos em pé lá dentro. Foi se aproximando, enquanto a luz era acesa. Pôde reconhecer o cabelo marrom amarrado da mãe e a careca brilhante do velho Bargapo.

terça-feira, 16 de outubro de 2007

CAPÍTULO XII_Cadê a bendita chave?

Bargapo entrou na oficina. Olhava para Zeh enquanto passava a toalha sobre a cabeça, enxugando os poucos fios de cabelo, ainda molhados. Mais uma vez o menino se encontrava com uma cara de besta, diante do sorriso sádico do velho. Tudo que queria era estalar o dedo e sumir da oficina. Seu rosto ainda estava quente pela vergonha que estava passando.

- Não esquente. meu rapaz. Essas coisas acontecem. Não foi a primeira vez. Quando esse galpão ainda estava na lista de oficinas para aprendizagem dos alunos da Vila, toda semana eu dava um flagra assim. Meninos são curiosos.

Zeh puxou a cadeira ao lado da escrivaninha e sentou-se. Colocou os cotovelos sobre os joelhos e as palmas das mãos sob o queixo. Queria prestar atenção no que o velho estava dizendo. Sentia-se mais calmo. Bargapo sabia como fazer uma pessoa se sentir aliviada. Tinha aparência de durão, mas era muito simpático. Aquele tom rouco da voz lhe fazia bem. O velho continuou.

- Também já fui muito curioso, quando jovem. Acho a curiosidade fantástica. Mas só vale a pena quando é usada para coisas boas, como aprender e descobrir coisas novas. Quando os alunos chegavam aqui, viviam mexendo nos meus bagulhos. Eu até entendia. O povo lá de fora tem muito papo furado, dizem o que não sabem ao meu respeito. Criaram uma lenda, acho que é isso.

- É verdade. Dizem muitas coisas. Mas não estou aqui por causa de lendas. Sei que você foi muito amigo do meu pai. Ele gostaria de me ver aqui.

- Sim, seu pai era um irmão pra mim. Me ajudou várias vezes. Juntos, descobrimos muitas coisas. Pode ter certeza que a nossa curiosidade foi usada para aprender.

Pela primeira vez no dia, havia um diálogo na oficina. Os dois passaram alguns minutos jogando conversa fora. Logo depois, Zeh voltou à guilhotina para terminar sua tarefa. Bargapo foi para o outro lado finalizar a escada que entregaria de tarde.
Ficaram em silêncio, concentrados. O velho não se agüentou, ele sabia do menino mais do que imaginava.

- Você sabe que tem muito mais pra descobrir aqui, meu rapaz. Seu pai era um gênio, você está me saindo a cópia. Trouxe a bendita chave?

Zeh parou de cortar o pedaço de folha pela metade e levantou a cabeça. A mão ainda segurava a régua afinada.

quarta-feira, 10 de outubro de 2007

CAPÍTULO XI_A escrivaninha

Depois das últimas palavras do velho martelarem em sua cabeça, Zeh olhou firme até enxergar o ombro largo sair do galpão e passar pelo lado de fora da janela, à sua esquerda. Não pensou em mais nada. Olhou tudo ao redor, procurava por algum armário, baú ou estante que pudesse começar a vasculhar uns papéis. Apesar de ser uma serralheria, a oficina estava bem arrumada. Bargapo era um velho organizado, além do grande capricho que tinha com seus trabalhos, pregava também pela organização da oficina. Zeh suava. O medo de ser visto mexendo nas coisas poderia acabar com qualquer plano. Mais próximo, perto da guilhotina, uma escrivaninha igual a do seu quarto, começaria por ali. Eram duas gavetas pequenas na parte de cima e mais quatro gavetas com a largura do móvel em baixo.

Achou que se começasse por baixo poderia achar mais rápido o que queria. Colocou as duas mãos nos puxadores e abriu pela metade a gaveta do móvel marrom escuro. Tudo ali tinha poeira. Quanto tempo fazia que o velho não abria aquela gaveta?
No interior, muitos desenhos antigos, rascunhos, alguns lápis velhos e uma régua metálica de um tamanho exagerado. Percebeu que ali não encontraria nada. Levantou um pouco a coluna e puxou a penúltima gaveta, a de cima e a primeira gaveta grande. Estavam todas vazias. Só lhe restava as duas gavetas menores. Não acreditava que poderia encontrar algo de um jeito tão óbvio assim. Era teimoso, não ia desistir. Puxou as duas gavetas de uma só vez. Na esquerda, uma caixa preta, alicates, chaves de fenda de todos os tamanhos e alguns parafusos. Olhou para a direita. Algumas contas, mais papéis.

Ficou intrigado com a caixa preta. Tirou-a da gaveta e a apoiou na escrivaninha. Estava fechada, teria que procurar alguma forma de abrir aquela caixa. Não estaria fechado sem motivos. Pegou uma chave de fenda para arrombar a caixa preta, decorada com couro. Enfiou a ponta entre as duas partes, nada da caixa abrir. Foi do lado esquerdo até o direito passando a ponta entre a parte de cima e de baixo da caixa. Do lado direito, um botão branco, como um interruptor de luz. Apertou, ouviu um estalo. A parte de cima subiu ligeiramente, estava ansioso para abri-la. Dentro da caixa, mais uma pegadinha do velho. Tinha um papel, aquele mesmo papel que Bargapo usava como rascunho. Ele leu.

“Meus banhos não costumam ser demorados”.

segunda-feira, 1 de outubro de 2007

CAPÍTULO X_Fique à vontade

Zeh não estava ligando para nenhuma dessas máquinas. O que ele queria ver ainda não tinha avistado em nenhum canto da oficina. Com toda aquela ansiedade de chegar cedo no trabalho, ele esqueceu em casa a chave que estava na caixa do presente. Quando passou os dedos pelos bolsos e percebeu que estavam vazios, colocou a mão aberta no rosto, lamentando.

Não fazia muito tempo, Zeh ouviu do seu quarto a mãe reclamando que havia perdido a chave pela Vila. Depois de alguns minutos, abriu a porta e espiou atrás das cortinas da sala o velho lá fora falando com sua mãe. Pendurado nos dedos em uma das mãos do Bargapo, estava um molho de chaves, na outra, um caderno que era folheado com cuidado página por página. Ficou mais algum tempo olhando, até que o velho apontou com o dedo indicador para uma das folhas do caderno de anotações. Em seguida, a mãe juntou as palmas das mãos e as balançou, feliz por ele ter encontrado. Zeh concluiu que era o velho quem tinha os registros das chaves da Vila, afinal, era o único que trabalhava com ferros por ali. Por que não ser também o único chaveiro?

No dia em que resolveu abrir o presente e ler a mensagem do pai no chaveiro, não demorou muito tempo para lembrar daquele episódio da mãe pedindo ao velho uma nova chave. Ligou o objeto ao fato, só tinha uma saída. Se aquela chave estava na sua caixa de presente, quem a fez foi Bargapo. Só ele poderia saber qual era a utilidade da chave, para qual tipo de fechadura ela foi feita e onde encontrá-la. Parte do plano já tinha sido executada, já estava ali, dentro da oficina. Precisava conquistar a confiança do ferreiro, ou então resolver por conta própria, vasculhando os arquivos em algum lugar do galpão.

Bargapo lhe deu dois rolos de papel, para que ele cortasse, em tamanhos iguais, algumas folhas para serem usadas de rascunho. Era um serviço fácil, para um primeiro dia de trabalho.

- Corte o dois rolos, pode ser deste tamanho. Levante a guilhotina, segure aqui com uma mão, coloque o papel e abaixe com força. Não é difícil.

Entregou na mão do menino um modelo do tamanho de rascunho.

- Preciso lavar o rosto e tomar um café bem quente, quer alguma coisa meu rapaz?

Zeh só balançou a cabeça negativamente.

- Volto em alguns minutos, fique à vontade. Só tome cuidado para não se machucar.

“Fique à vontade”. Ele teria algum tempo para procurar o caderno.

quinta-feira, 27 de setembro de 2007

CAPÍTULO IX_Bom dia, bom-humor

Zeh deu um pulo para trás. Não imaginava que o tímido velho pudesse estar armando uma pegadinha daquelas, ainda mais se contorcendo em gargalhadas ao ver o menino assustado.

- Entre rapaz, deixa eu te apresentar tudo por aqui.

Ainda sem graça, Zeh deu meia volta para esquerda e se direcionou até a porta metálica, que ainda estava fechada. Pelo lado de dentro, Bargapo destrancava um enorme cadeado, dessamarrando as correntes que trancavam o galpão. Ele nunca tinha chegado tão perto do ferreiro, ele realmente cheirava mal, como diziam algumas pessoas na Vila. Assistiu o velho empurrar uma das portas, para que ele pudesse entrar. Ao olhar para as mãos de Bargapo, ele lembrou da sua caixa e da chave misteriosa que estava lá dentro. Ficou um tempo reconhecendo o lugar. Era escuro lá dentro, só iluminando um pouco com o portão sendo aberto. Por algum tempo, ficou pensando como o velho conseguia fazer alguma coisa com toda aquela escuridão, iluminada somente pelo fogo azul que saía da ponta do maçarico.

- Bom dia!

Zeh tentou ser simpático ao dar bom dia, mas ao mesmo tempo muitas coisas passavam pela sua cabeça. Bargapo deu-lhe um sorriso que o fez se soltar um pouco mais, dizendo em seguida:

- Vamos, entre meu jovem! Não tenha medo. Isso aqui é escuro como um matadouro, mas acredito que viverá bons momentos por aqui.

Gostou do que ouviu. Já começou o dia aprendendo a lição de que é preciso conhecer as pessoas antes de tirar alguma conclusão. Então percebeu que não devia ter dado ouvidos quando falavam mal do velho. Pelo visto, ele era uma boa pessoa, só vivia solitário, sem mulher ou filhos para sentarem juntos em uma grande mesa de jantar. Talvez achasse melhor assim.

O velho começou a andar na sua frente, apresentando algumas ferramentas.

- Essa é a máquina de prensa, na direita está o Torno, a furadeira, uma fresadora.

Enquanto andava ia falando com Zeh.

- Depois explico para você, meu rapaz, como todas podem ser utilizadas. Acho que vou começar a usar você nesta aqui, a GUILHOTINA.

Mais uma vez se contorceu com uma chuva de risadas. De novo, o menino arregalhou os olhos e deixou o queixo caído.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

CAPÍTULO VIII_Quem cedo madruga

Zeh já estava acostumado a acordar cedo nos últimos dias. Na última noite, a mãe lhe contou o que ela havia conversado mais cedo com o Bargapo. Ficou sabendo que ele era um antigo amigo do Seu Oristides e que, os dois, cresceram juntos na Vila Amargo. Estudavam e brincavam o dia todo. Andavam pelas Vilas mais próximas, entravam na mata, inventavam e achavam coisas novas por lá. Zeh já tinha ouvido algumas histórias do pai com um velho amigo, mas não se recordava muito dos detalhes e nem imaginava que esse amigo poderia ser o rude Bargapo. Ele não tinha um companheiro como o pai tinha na infância, por isso, arrumava um jeito de se divertir e passar o tempo sozinho. Na infância, Zeh criava as coisas por sua conta, uma delas foi tirar por completo o grafite do seu lápis de escrever, introduzindo-o dentro de um metal cilíndrico um pouco maior e mais largo que o grafite. Quando percebeu que o grafite era menos grosso e que não daria para escrever, raspou toda sua borracha em uma lixa e jogou no cilindro com o grafite já dentro. Finalmente, o grafite estava fixo dentro do metal. Quando acabasse a ponta, ele empurrava para baixo com um palito de fósforo e escrevia à novamente. Enquanto escrevia, a sala perdia a atenção da aula com a luz do sol refletindo no “lápis” do Zeh. Pra sua idade, era uma idéia e tanto.

Preparou seu café mais cedo e foi andando pra casa do velho. Quando chegou, a casa parecia abandonada. A fachada estava um pouco largada, pois o Outono passado derrubou algumas folhas das enormes mangueiras que rodeavam a casa e, pelo visto, Bargapo não estava nem aí com a sujeira em cima do telhado. Não ouviu nenhum barulho, estranhou que o velho ainda estivesse dormindo. Chegou mais perto e foi tirar a curiosidade antes que Bargapo o visse bisbilhotando. Atrás da casa, onde o velho dormia, havia um pequeno galpão que imaginou ser utilizado para a fabricação das peças. Zeh se aproximou. Tinham duas janelas que arejavam ou iluminavam ainda mais o local. Uma das janelas estava aberta, o menino não perdeu tempo e foi matar a curiosidade. A janela era da altura do seu pescoço, não faria nenhum esforço para ver o que tinha dentro do seu novo local de trabalho. Apoiou a mão em cima do pára-peito e esticou um pouco os pés. Num susto tremendo, viu o velho levantar rapidamente com uma máscara esquisita e um maçarico aceso nas mãos. Em um som abafado, pôde entender muito bem o que tinha dito.

- Estou vendo que você está preparado, meu rapaz.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

CAPÍTULO VII_O Emprego

Dona Pertídia já estava pensando no pretexto que iria usar para convencer Bargapo a “adotar” Zeh em sua serralheria. Seu Oristides, como sempre, ajudava os moradores da Vila Amargo e dera preferência ao velho inúmeras vezes com o comércio dos seus produtos. Ele mantinha forte amizade com muitos comerciantes do centro, era uma pessoa influente e respeitado por onde passava naqueles arredores. Qualquer coisa que indicasse seria vista com bons olhos pelos comerciantes do centro. E não era diferente com os metais de Bargapo, mas com a morte do pai de Zeh, ele havia perdido nas vendas. O velho era o único que visitava a cidade constantemente. Em geral, os moradores da Vila Amargo se acomodavam com o lugar onde viviam, eles tinham tudo ali e não viam motivo algum para sair do vilarejo. Tudo que era produzido dentro da Vila ou era levado para a cidade quase todos os dias por um caminhão velho que ficava à disposição dos produtores ou consumido entre eles mesmo. No fim do mês, recebiam de acordo com a venda dos produtos, em consignação com a loja.

Apesar de ser um grande ferreiro, Bargapo se atrapalhava com a timidez ao negociar os produtos. Estava vivendo uma crise de vendas. Suas peças já abarrotavam a oficina e o que não era vendido no centro ele pegava de volta, derretia o metal e aproveitava tudo. Há algum tempo, só fazia o que alguns clientes pediam, afim de evitar o gasto excessivo de trabalho, tempo e material.

8 da manhã a mãe de Zeh bateu na porta do velho. Ele tomou um susto, ninguém batia ali fazia tempo. Ficou olhando para ela por quase um minuto, até pedir para que entrasse. Pertídia começou o assunto falando da amizade dele com Seu Oristides e que sentia muito por ele estar passando por uma situação difícil. Ficaram cerca de 2 horas conversando, até se emocionaram lembrando do bondoso Oristides. Quando terminaram a conversa, dividiram um forte abraço.

Ficou combinado que no dia seguinte, Zeh começaria a trabalhar na oficina, em troca, Dona Pertídia tentaria devolver o prestígio do artista ferreiro.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

CAPÍTULO VI_O Plano

Depois de ler a mensagem da Chave, disse bem baixo para ele mesmo.
- E agora?
O pai explicaria passo a passo como usar o presente, mas não o tinha mais por perto. Ele teria que resolver tudo sozinho, se é que tinha jeito de fazer isso sem o pai. Na escola, Zeh já tinha aprendido o básico de tudo com as aulas diárias da professora Aliares. Era o suficiente para viver na Vila Amargo e então escolher uma profissão que pudesse ser aproveitada, ou seja, que fosse útil para o dia-a-dia dos outros moradores da Vila. Quando os jovens terminavam o ensino, freqüentavam várias oficinas a fim de aprender diversas funções, como saber escolher a terra e o clima certos para plantar, habilidades com madeira e tecidos, técnicas de eletricidade, dentre outras.

Quando terminou o período de escola, Zeh não queria participar de nenhuma oficina. Passou um dia inteiro tentando convencer sua mãe de que queria mesmo era trabalhar na casa do velho Bargapo, onde funcionava uma ferralheria. Dona Pertídia ficou assustada. Bargapo não era velho, somente aparentava ser. Era uma pessoa sozinha, triste e que fazia um serviço que lhe rendia apenas muitas rugas, cabelos brancos, músculos rígidos e uma eterna aparência cansada. Poucos da Vila mantinham relacionamento com ele, tinham medo do forte e barbudo que carregava nas costas quase 200 quilos de ferro todos os dias. Ele era bruto, suava feito um porco debaixo do sol, mas nada disso tinha importância para Zeh. Somente uma coisa interessava o menino.

De 40 em 40 dias o velho saía da Vila Amargo e ia de carroça até o centro, levar tudo que produzia nesse período para tentar vender nas principais lojas. Se conseguisse trabalhar com o Bargapo, teria que ajudar o velho nessa viagem. Ele já estava construindo um plano em sua cabeça. Agora, só faltava a mãe convencer o ferreiro a aceitar o menino no trabalho. Ela mal sabia o que o filho estava planejando. Na Rodoviária, Zeh pegaria um ônibus.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

CAPÍTULO V_Coragem

Sete anos. Essa era a idade de Zeh quando ganhou o último presente de Seu Oristides. Suas lembranças da infância com o pai eram pequenas, com essa idade pouca coisa fica na memória. Mas ele parecia ter convivido o suficiente. Tinha o jeito, a inteligência e a tranqüilidade do pai. Aprendeu com ele muita coisa e, agora, já passava de um menino. Na última noite, quando se retirou da mesa de jantar para dormir, sentiu que o momento havia chegado. Não podia deletar da memória o presente que recebera aos sete anos. Sua vida estava sem sentido. Ignorar toda aquela história envolvida com fantástica caixa de madeira de Tauari seria um descaso da sua parte. Alguma coisa ele tinha que fazer.

Zeh amanheceu mais cedo. Às 5:12h da manhã ele já estava de pé em seu quarto, olhando para um espelho grande, que ficava na frente de sua cama. Ao lado, um cômodo escuro, com aparência antiga. Nas gavetas ficavam suas roupas e na parte de cima, Zeh colocava o pente, alguns quadros com fotos e um cordão que pendurava no pescoço toda manhã. Depois de nove anos sobrevivendo calado e estático, a partir de agora os dias seriam outros. Olhou por alguns minutos para o espelho, perguntando a si mesmo se era aquilo que devia ser feito. Foi até o banheiro, lavou o rosto e voltou para o quarto. Sua mãe ainda estava adormecida. O sol ainda era tímido lá fora.

No canto do quarto, havia um baú onde guardava todas as suas bugigangas. Brinquedos de quando era mais novo, roupas velhas, alguns sapatos e chinelos. Nada disso interessava agora. Vasculhou o baú mais alguns minutos, colocando o que não queria em cima da cama. No fundo, a caixa que rejeitara desde a morte do seu pai, que agora estava na frente dos seus olhos. Tomou coragem e mais uma vez estava ali, segurando o presente nas mãos. Abriu delicadamente a caixa e ouviu o barulho fino das dobras de metal que prendiam a tampa. Leu novamente o recado que seu pai deixou. Logo abaixo tinha uma lista dos objetos que estavam na caixa.

1 – A Chave. Abra os olhos antes de abrir as portas.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

CAPÍTULO IV_Um mistério como lembrança

Zeh acordou na mesma hora em que a represa ia aos ares. Seu Oristides, quando chegou lá, se deparou com uma situação que nunca havia visto antes. Para ele, aquele serviço era tranqüilo, chegava até ser monótono. Todos os dias ele comparecia à Casa de Manutenção e sentava em sua cadeira de estofado veludo vermelho e acabamento com madeira escura, peça que seu pai construiu junto com ele, quando ainda tinha 16 anos. Raramente tinha problemas na represa e, quando tinha, eram fáceis de resolver. Um parafuso a ser trocado em alguma máquina, óleo em alguns motores ou até visitar as barragens que acumulam água da chuva ou do rio nascente. Essa era a rotina de trabalho do pai de Zeh.

Quando ouviu o barulho, o menino levantou assustado e foi falar com sua mãe. Na Vila, algumas casas acenderam velas, iluminando um pouco mais aquela noite.
Ficou claro que alguma coisa estranha estava acontecendo. Vozes vinham do lado de fora. Dona Pertídia sentiu-se aflita. O marido havia saído para resolver um problema na represa e o mensageiro queria falar somente com ele, ela não tomaria nota do que realmente estava acontecendo. Mas a ficha dela estava caindo. Apesar da distância com a Vila, aquele estrondo só poderia ter vindo da represa. Não tinha como ter informações, não havia sequer um telefone por perto, tudo seria esclarecido de manhã. E foi o que aconteceu. Logo cedo chegaram alguns carros da cidade mais próxima. Dois deles pararam em frente à casa de Zeh e alguns foram para a represa. A polícia queria explicações sobre a explosão que fez com que as Vilas daquela região parassem de receber energia e água. Os investigadores queriam recolher todas as informações possíveis e resolver o caso.
Enquanto Pertídia relatava tudo que aconteceu, o menino não saía do quarto. Segurava o presente misterioso que recebera no seu aniversário como uma última lembrança do pai, que a partir daquele dia, nunca mais voltaria para casa.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

CAPÍTULO III_O herdeiro gentil

Naquela noite, logo após o encerramento da cerimônia na residência 27, Seu Oristides recebeu um chamado do mensageiro da Casa de Manutenção. Ele não teve escolha, teve que atender e sair imediatamente. O menino mais uma vez se via na situação que tanto detestava. Sempre que Zeh aproveitava as poucas horas de lazer com o pai, algo acontecia para atrapalhar. Não foi diferente no momento em que mais se esperava de um pai. Era seu aniversário, o dia dele. Mas, mesmo assim, Zeh não se manifestou. Continuou com o mesmo semblante tranqüilo de sempre. Foi dormir inquieto mas ao mesmo tempo com um pouco de raiva do pai. Ele lhe devia explicações sobre o presente. Não podia esperar mais uma hora sequer.

A represa na qual Seu Oristides trabalhava era antiga, com mais de 70 anos de existência. O maquinário se encontrava em estado totalmente precário e quem fazia tudo ali funcionar era a experiência e a inteligência do pai de Zeh, que colocava em prática tudo que o avô do menino lhe ensinou durante a infância com a ajuda do brincalhão “Tio Meirias”, seu assistente. Parecia genética, mas até que era engraçado como aquela família seguia sempre a mesma linha. Primeiro o avô, segundo o pai e agora o menino. Todos estes tinham a personalidade idêntica. Aparência bondosa, de fala devagar e com uma inteligência fora do normal, pelo menos para os padrões da Vila Amargo. Zeh era conhecido como o “gentil”. Todos achavam incrível a educação que o menino trazia de casa. Ele fazia questão em ajudar quem estivesse por perto, conhecido ou não. Na escola, a capacidade em aprender rápido fez dele um monitor, função que dava muito orgulho aos pais, que o viam pela janela da sala de aula com apenas 6 anos ensinando aos outros a escrever as letras do alfabeto. Mesmo assim, a Vila toda sabia que a “herança” de administrar a represa ficaria com o “gentil” e que, seguindo a tradição da família, ele tomaria o cargo do pai quando aposentasse e passaria o resto da vida cuidando da “Casa de Manutenção das Águas”. Nos fins de semana, Zeh e seu pai saiam de casa cedo. Os dois vestidos com macacão azul e maleta de ferramentas nas mãos. Enquanto criança, Zeh adorava aquele ritual e se achava o tal dentro daquela roupa que sobrava nele. Depois de não ter mais nada para pensar, ele adormeceu. Passava da meia noite, não era mais o seu dia. Duas horas depois ele foi acordado com um susto. Em um pesadelo, Zeh se encontrava com 14 anos. Corria entre corredores estreitos e sem luz. Quando virava a esquina de um deles, dava de cara com uma mão que lhe acertava a testa. Estirado no chão, viu uma chave grande cair em um buraco e fazer um ensurdecedor barulho metálico. Aquele som o fez acordar suado e assustado.

quarta-feira, 29 de agosto de 2007

CAPÍTULO II_Eis o presente

Todos estavam loucos para descobrir o presente. A Vila nunca ficara tão eufórica em uma confraternização com “canto de palmas”. Normalmente, numa festa assim, o momento mais esperado era a distribuição dos pedaços da torta e o vai-e-vem da bandeja lotada de copos com o delicioso e tradicional suco de amora. O mais engraçado era no final, todos se despedindo com o lábio e cantos da boca manchados de roxo. A casa de Zeh era simples, mas aconchegante. Os seis cômodos eram bem distribuídos e com um tamanho agradável. Uma mansão para aquela família pequena. Os vizinhos adoravam quando algo acontecia lá, como as reuniões da igreja.

Como a maioria das vilas, Amargo não podia deixar de ter uma capela, onde as reuniões oficiais aconteciam na Segunda-Feira, pois para eles, era o dia menos esperado da semana, o dia que terminava o descanso e começava o trabalho. Fazer os cultos no começo da semana era como dar um motivo de ninguém rejeitar o indesejado dia, para eles, era considerado um pecado grave não aproveitar o dia, o sol, a chuva e a natureza em geral. Em rodízio, toda Quarta-feira o culto era feito em uma casa diferente. Na “mansão” 27 parecia ser mais divertido.

Zeh finalmente retirou o embrulho. Dentro dele estava uma caixa de madeira com detalhes que ninguém ali presente imaginava que pudessem ser desenhados em um tronco de madeira. O Monte Alicerce era rico em natureza. O verde era praticamente a cor que predominava e Seu Aristides o conhecia como a palma da mão. Foi de lá que ele tirou aquele pedaço de madeira e a partir dele, fez aquela caixa. De quinze a vinte dias, este foi o tempo que demorou para a peça ser esculpida. Com a madeira de Tauari, material com o qual a caixa foi feita, podia-se obter resultados formidáveis. Era macia ao corte, o que permitia ótimos acabamentos. Seu Aristides usou todo o conhecimento que guardava do avô de Zeh para presentear o garoto da forma mais inteligente possível. Sim, era uma linda caixa, ela brilhava. Tinha detalhes incríveis, uma forma jamais vista na Vila, com desenhos e listras alternando nas cores bege e marrom. As visitas voltaram ao normal depois da surpresa do tão esperado presente. Ficaram deslumbrados com tamanha beleza da caixa que o aniversariante ganhara. O silêncio mais uma vez foi quebrado quando alguém soltou na sala.

-Uma caixa de moedas!

Palpite precipitado. Dentro da caixa havia um bilhete que o pai escrevera para Zeh.

“Parabéns! Você já é um rapaz. Não mostre os objetos para ninguém. Feche a caixa e dê um lindo sorriso para todos. Explicarei tudo depois.”

Ao ler a carta, ele disse com uma expressão meio sem graça.

-Obrigado pai. Vou começar a juntar as moedas.

terça-feira, 28 de agosto de 2007

CAPÍTULO I_Começa a vida de Zeh

Zeh. Quem nunca ouviu falar nesse jovem rapaz que vive nas redondezas da montanha das Folhas Secas?

Como um exemplo, Zeh sempre foi muito elogiado pelos seus vizinhos da Vila Amargo, um pequeno vale que se encontra entre a montanha das Folhas Secas e o verde e agradável Monte Alicerce.

Desde criança, Zeh já se esboçara um grande inventor. Seu sonho era viajar para alguma cidade grande e mostrar ao mundo suas idéias. Quando completou sete anos, ganhou do seu querido pai um presente que iria marcar para sempre a sua vida. Zeh recebera um embrulho dourado que brilhava com o reflexo da luz superior.

Na Vila Amargo, ganhar um presente embrulhado era uma grande honra. Os embrulhos não eram fáceis de ver naquelas redondezas, e o “Seu Oristides”, pai de Zeh, surpreendeu todos quando lhe entregou o presente.

Ele ficou abismado com o que segurava entre as mãos. Olhou ao seu redor e se assustara com o tamanho dos olhos das pessoas que estavam ali aguardando o tão esperado “canto de palmas” para logo em seguida comer a deliciosa torta de pêssego da “Dona Pertídia”.

Começou com alguns movimentos para abrir o embrulho, que fazia barulho com a agitação dos seus dedos.

Enquanto isso, o recinto aguardava em silêncio, imaginando o que estava por vir. Parecia que Zeh estava vivendo um momento único em sua vida. Sentia-se uma aberração com toda aquela atenção voltada para ele. Seu Oristides era o único pai da Vila Amargo que poderia proporcionar ao filho um presente com um embrulho daqueles. Ele trabalhava na “Casa de Manutenção das Águas”, uma represa situada há 500 metros da Vila. Era um homem com aparentemente 45 anos de idade, e aprendera tudo sobre ferramentas com o pai. Agora, era o responsável pelo saneamento e recebimento de água da pequena população, enquanto os outros pais de família se limitavam em plantar e colher frutos. Zeh suava. A gola da sua camisa verde, um presente da mãe, estava úmida, pelo fato do suor descer pelo pescoço. Voltou a abrir o embrulho, seus olhos não desgrudavam do presente. A tensão aumentava entre as visitas. Faltava apenas uma parte a ser descoberta, para então, todos deslumbrassem do tal desfecho. Enfim, chegou o momento. Zeh tirou do embrulho a caixa que guardava o presente. Quando terminou, o silêncio do lugar foi quebrado. Todos que estavam ali confraternizando lançaram um som de surpresa.

_ Ohhhhhh!

Depois desse dia, a vida dele nunca mais foi a mesma.