quinta-feira, 27 de setembro de 2007

CAPÍTULO IX_Bom dia, bom-humor

Zeh deu um pulo para trás. Não imaginava que o tímido velho pudesse estar armando uma pegadinha daquelas, ainda mais se contorcendo em gargalhadas ao ver o menino assustado.

- Entre rapaz, deixa eu te apresentar tudo por aqui.

Ainda sem graça, Zeh deu meia volta para esquerda e se direcionou até a porta metálica, que ainda estava fechada. Pelo lado de dentro, Bargapo destrancava um enorme cadeado, dessamarrando as correntes que trancavam o galpão. Ele nunca tinha chegado tão perto do ferreiro, ele realmente cheirava mal, como diziam algumas pessoas na Vila. Assistiu o velho empurrar uma das portas, para que ele pudesse entrar. Ao olhar para as mãos de Bargapo, ele lembrou da sua caixa e da chave misteriosa que estava lá dentro. Ficou um tempo reconhecendo o lugar. Era escuro lá dentro, só iluminando um pouco com o portão sendo aberto. Por algum tempo, ficou pensando como o velho conseguia fazer alguma coisa com toda aquela escuridão, iluminada somente pelo fogo azul que saía da ponta do maçarico.

- Bom dia!

Zeh tentou ser simpático ao dar bom dia, mas ao mesmo tempo muitas coisas passavam pela sua cabeça. Bargapo deu-lhe um sorriso que o fez se soltar um pouco mais, dizendo em seguida:

- Vamos, entre meu jovem! Não tenha medo. Isso aqui é escuro como um matadouro, mas acredito que viverá bons momentos por aqui.

Gostou do que ouviu. Já começou o dia aprendendo a lição de que é preciso conhecer as pessoas antes de tirar alguma conclusão. Então percebeu que não devia ter dado ouvidos quando falavam mal do velho. Pelo visto, ele era uma boa pessoa, só vivia solitário, sem mulher ou filhos para sentarem juntos em uma grande mesa de jantar. Talvez achasse melhor assim.

O velho começou a andar na sua frente, apresentando algumas ferramentas.

- Essa é a máquina de prensa, na direita está o Torno, a furadeira, uma fresadora.

Enquanto andava ia falando com Zeh.

- Depois explico para você, meu rapaz, como todas podem ser utilizadas. Acho que vou começar a usar você nesta aqui, a GUILHOTINA.

Mais uma vez se contorceu com uma chuva de risadas. De novo, o menino arregalhou os olhos e deixou o queixo caído.

segunda-feira, 24 de setembro de 2007

CAPÍTULO VIII_Quem cedo madruga

Zeh já estava acostumado a acordar cedo nos últimos dias. Na última noite, a mãe lhe contou o que ela havia conversado mais cedo com o Bargapo. Ficou sabendo que ele era um antigo amigo do Seu Oristides e que, os dois, cresceram juntos na Vila Amargo. Estudavam e brincavam o dia todo. Andavam pelas Vilas mais próximas, entravam na mata, inventavam e achavam coisas novas por lá. Zeh já tinha ouvido algumas histórias do pai com um velho amigo, mas não se recordava muito dos detalhes e nem imaginava que esse amigo poderia ser o rude Bargapo. Ele não tinha um companheiro como o pai tinha na infância, por isso, arrumava um jeito de se divertir e passar o tempo sozinho. Na infância, Zeh criava as coisas por sua conta, uma delas foi tirar por completo o grafite do seu lápis de escrever, introduzindo-o dentro de um metal cilíndrico um pouco maior e mais largo que o grafite. Quando percebeu que o grafite era menos grosso e que não daria para escrever, raspou toda sua borracha em uma lixa e jogou no cilindro com o grafite já dentro. Finalmente, o grafite estava fixo dentro do metal. Quando acabasse a ponta, ele empurrava para baixo com um palito de fósforo e escrevia à novamente. Enquanto escrevia, a sala perdia a atenção da aula com a luz do sol refletindo no “lápis” do Zeh. Pra sua idade, era uma idéia e tanto.

Preparou seu café mais cedo e foi andando pra casa do velho. Quando chegou, a casa parecia abandonada. A fachada estava um pouco largada, pois o Outono passado derrubou algumas folhas das enormes mangueiras que rodeavam a casa e, pelo visto, Bargapo não estava nem aí com a sujeira em cima do telhado. Não ouviu nenhum barulho, estranhou que o velho ainda estivesse dormindo. Chegou mais perto e foi tirar a curiosidade antes que Bargapo o visse bisbilhotando. Atrás da casa, onde o velho dormia, havia um pequeno galpão que imaginou ser utilizado para a fabricação das peças. Zeh se aproximou. Tinham duas janelas que arejavam ou iluminavam ainda mais o local. Uma das janelas estava aberta, o menino não perdeu tempo e foi matar a curiosidade. A janela era da altura do seu pescoço, não faria nenhum esforço para ver o que tinha dentro do seu novo local de trabalho. Apoiou a mão em cima do pára-peito e esticou um pouco os pés. Num susto tremendo, viu o velho levantar rapidamente com uma máscara esquisita e um maçarico aceso nas mãos. Em um som abafado, pôde entender muito bem o que tinha dito.

- Estou vendo que você está preparado, meu rapaz.

quarta-feira, 19 de setembro de 2007

CAPÍTULO VII_O Emprego

Dona Pertídia já estava pensando no pretexto que iria usar para convencer Bargapo a “adotar” Zeh em sua serralheria. Seu Oristides, como sempre, ajudava os moradores da Vila Amargo e dera preferência ao velho inúmeras vezes com o comércio dos seus produtos. Ele mantinha forte amizade com muitos comerciantes do centro, era uma pessoa influente e respeitado por onde passava naqueles arredores. Qualquer coisa que indicasse seria vista com bons olhos pelos comerciantes do centro. E não era diferente com os metais de Bargapo, mas com a morte do pai de Zeh, ele havia perdido nas vendas. O velho era o único que visitava a cidade constantemente. Em geral, os moradores da Vila Amargo se acomodavam com o lugar onde viviam, eles tinham tudo ali e não viam motivo algum para sair do vilarejo. Tudo que era produzido dentro da Vila ou era levado para a cidade quase todos os dias por um caminhão velho que ficava à disposição dos produtores ou consumido entre eles mesmo. No fim do mês, recebiam de acordo com a venda dos produtos, em consignação com a loja.

Apesar de ser um grande ferreiro, Bargapo se atrapalhava com a timidez ao negociar os produtos. Estava vivendo uma crise de vendas. Suas peças já abarrotavam a oficina e o que não era vendido no centro ele pegava de volta, derretia o metal e aproveitava tudo. Há algum tempo, só fazia o que alguns clientes pediam, afim de evitar o gasto excessivo de trabalho, tempo e material.

8 da manhã a mãe de Zeh bateu na porta do velho. Ele tomou um susto, ninguém batia ali fazia tempo. Ficou olhando para ela por quase um minuto, até pedir para que entrasse. Pertídia começou o assunto falando da amizade dele com Seu Oristides e que sentia muito por ele estar passando por uma situação difícil. Ficaram cerca de 2 horas conversando, até se emocionaram lembrando do bondoso Oristides. Quando terminaram a conversa, dividiram um forte abraço.

Ficou combinado que no dia seguinte, Zeh começaria a trabalhar na oficina, em troca, Dona Pertídia tentaria devolver o prestígio do artista ferreiro.

segunda-feira, 17 de setembro de 2007

CAPÍTULO VI_O Plano

Depois de ler a mensagem da Chave, disse bem baixo para ele mesmo.
- E agora?
O pai explicaria passo a passo como usar o presente, mas não o tinha mais por perto. Ele teria que resolver tudo sozinho, se é que tinha jeito de fazer isso sem o pai. Na escola, Zeh já tinha aprendido o básico de tudo com as aulas diárias da professora Aliares. Era o suficiente para viver na Vila Amargo e então escolher uma profissão que pudesse ser aproveitada, ou seja, que fosse útil para o dia-a-dia dos outros moradores da Vila. Quando os jovens terminavam o ensino, freqüentavam várias oficinas a fim de aprender diversas funções, como saber escolher a terra e o clima certos para plantar, habilidades com madeira e tecidos, técnicas de eletricidade, dentre outras.

Quando terminou o período de escola, Zeh não queria participar de nenhuma oficina. Passou um dia inteiro tentando convencer sua mãe de que queria mesmo era trabalhar na casa do velho Bargapo, onde funcionava uma ferralheria. Dona Pertídia ficou assustada. Bargapo não era velho, somente aparentava ser. Era uma pessoa sozinha, triste e que fazia um serviço que lhe rendia apenas muitas rugas, cabelos brancos, músculos rígidos e uma eterna aparência cansada. Poucos da Vila mantinham relacionamento com ele, tinham medo do forte e barbudo que carregava nas costas quase 200 quilos de ferro todos os dias. Ele era bruto, suava feito um porco debaixo do sol, mas nada disso tinha importância para Zeh. Somente uma coisa interessava o menino.

De 40 em 40 dias o velho saía da Vila Amargo e ia de carroça até o centro, levar tudo que produzia nesse período para tentar vender nas principais lojas. Se conseguisse trabalhar com o Bargapo, teria que ajudar o velho nessa viagem. Ele já estava construindo um plano em sua cabeça. Agora, só faltava a mãe convencer o ferreiro a aceitar o menino no trabalho. Ela mal sabia o que o filho estava planejando. Na Rodoviária, Zeh pegaria um ônibus.

sexta-feira, 14 de setembro de 2007

CAPÍTULO V_Coragem

Sete anos. Essa era a idade de Zeh quando ganhou o último presente de Seu Oristides. Suas lembranças da infância com o pai eram pequenas, com essa idade pouca coisa fica na memória. Mas ele parecia ter convivido o suficiente. Tinha o jeito, a inteligência e a tranqüilidade do pai. Aprendeu com ele muita coisa e, agora, já passava de um menino. Na última noite, quando se retirou da mesa de jantar para dormir, sentiu que o momento havia chegado. Não podia deletar da memória o presente que recebera aos sete anos. Sua vida estava sem sentido. Ignorar toda aquela história envolvida com fantástica caixa de madeira de Tauari seria um descaso da sua parte. Alguma coisa ele tinha que fazer.

Zeh amanheceu mais cedo. Às 5:12h da manhã ele já estava de pé em seu quarto, olhando para um espelho grande, que ficava na frente de sua cama. Ao lado, um cômodo escuro, com aparência antiga. Nas gavetas ficavam suas roupas e na parte de cima, Zeh colocava o pente, alguns quadros com fotos e um cordão que pendurava no pescoço toda manhã. Depois de nove anos sobrevivendo calado e estático, a partir de agora os dias seriam outros. Olhou por alguns minutos para o espelho, perguntando a si mesmo se era aquilo que devia ser feito. Foi até o banheiro, lavou o rosto e voltou para o quarto. Sua mãe ainda estava adormecida. O sol ainda era tímido lá fora.

No canto do quarto, havia um baú onde guardava todas as suas bugigangas. Brinquedos de quando era mais novo, roupas velhas, alguns sapatos e chinelos. Nada disso interessava agora. Vasculhou o baú mais alguns minutos, colocando o que não queria em cima da cama. No fundo, a caixa que rejeitara desde a morte do seu pai, que agora estava na frente dos seus olhos. Tomou coragem e mais uma vez estava ali, segurando o presente nas mãos. Abriu delicadamente a caixa e ouviu o barulho fino das dobras de metal que prendiam a tampa. Leu novamente o recado que seu pai deixou. Logo abaixo tinha uma lista dos objetos que estavam na caixa.

1 – A Chave. Abra os olhos antes de abrir as portas.

segunda-feira, 10 de setembro de 2007

CAPÍTULO IV_Um mistério como lembrança

Zeh acordou na mesma hora em que a represa ia aos ares. Seu Oristides, quando chegou lá, se deparou com uma situação que nunca havia visto antes. Para ele, aquele serviço era tranqüilo, chegava até ser monótono. Todos os dias ele comparecia à Casa de Manutenção e sentava em sua cadeira de estofado veludo vermelho e acabamento com madeira escura, peça que seu pai construiu junto com ele, quando ainda tinha 16 anos. Raramente tinha problemas na represa e, quando tinha, eram fáceis de resolver. Um parafuso a ser trocado em alguma máquina, óleo em alguns motores ou até visitar as barragens que acumulam água da chuva ou do rio nascente. Essa era a rotina de trabalho do pai de Zeh.

Quando ouviu o barulho, o menino levantou assustado e foi falar com sua mãe. Na Vila, algumas casas acenderam velas, iluminando um pouco mais aquela noite.
Ficou claro que alguma coisa estranha estava acontecendo. Vozes vinham do lado de fora. Dona Pertídia sentiu-se aflita. O marido havia saído para resolver um problema na represa e o mensageiro queria falar somente com ele, ela não tomaria nota do que realmente estava acontecendo. Mas a ficha dela estava caindo. Apesar da distância com a Vila, aquele estrondo só poderia ter vindo da represa. Não tinha como ter informações, não havia sequer um telefone por perto, tudo seria esclarecido de manhã. E foi o que aconteceu. Logo cedo chegaram alguns carros da cidade mais próxima. Dois deles pararam em frente à casa de Zeh e alguns foram para a represa. A polícia queria explicações sobre a explosão que fez com que as Vilas daquela região parassem de receber energia e água. Os investigadores queriam recolher todas as informações possíveis e resolver o caso.
Enquanto Pertídia relatava tudo que aconteceu, o menino não saía do quarto. Segurava o presente misterioso que recebera no seu aniversário como uma última lembrança do pai, que a partir daquele dia, nunca mais voltaria para casa.

segunda-feira, 3 de setembro de 2007

CAPÍTULO III_O herdeiro gentil

Naquela noite, logo após o encerramento da cerimônia na residência 27, Seu Oristides recebeu um chamado do mensageiro da Casa de Manutenção. Ele não teve escolha, teve que atender e sair imediatamente. O menino mais uma vez se via na situação que tanto detestava. Sempre que Zeh aproveitava as poucas horas de lazer com o pai, algo acontecia para atrapalhar. Não foi diferente no momento em que mais se esperava de um pai. Era seu aniversário, o dia dele. Mas, mesmo assim, Zeh não se manifestou. Continuou com o mesmo semblante tranqüilo de sempre. Foi dormir inquieto mas ao mesmo tempo com um pouco de raiva do pai. Ele lhe devia explicações sobre o presente. Não podia esperar mais uma hora sequer.

A represa na qual Seu Oristides trabalhava era antiga, com mais de 70 anos de existência. O maquinário se encontrava em estado totalmente precário e quem fazia tudo ali funcionar era a experiência e a inteligência do pai de Zeh, que colocava em prática tudo que o avô do menino lhe ensinou durante a infância com a ajuda do brincalhão “Tio Meirias”, seu assistente. Parecia genética, mas até que era engraçado como aquela família seguia sempre a mesma linha. Primeiro o avô, segundo o pai e agora o menino. Todos estes tinham a personalidade idêntica. Aparência bondosa, de fala devagar e com uma inteligência fora do normal, pelo menos para os padrões da Vila Amargo. Zeh era conhecido como o “gentil”. Todos achavam incrível a educação que o menino trazia de casa. Ele fazia questão em ajudar quem estivesse por perto, conhecido ou não. Na escola, a capacidade em aprender rápido fez dele um monitor, função que dava muito orgulho aos pais, que o viam pela janela da sala de aula com apenas 6 anos ensinando aos outros a escrever as letras do alfabeto. Mesmo assim, a Vila toda sabia que a “herança” de administrar a represa ficaria com o “gentil” e que, seguindo a tradição da família, ele tomaria o cargo do pai quando aposentasse e passaria o resto da vida cuidando da “Casa de Manutenção das Águas”. Nos fins de semana, Zeh e seu pai saiam de casa cedo. Os dois vestidos com macacão azul e maleta de ferramentas nas mãos. Enquanto criança, Zeh adorava aquele ritual e se achava o tal dentro daquela roupa que sobrava nele. Depois de não ter mais nada para pensar, ele adormeceu. Passava da meia noite, não era mais o seu dia. Duas horas depois ele foi acordado com um susto. Em um pesadelo, Zeh se encontrava com 14 anos. Corria entre corredores estreitos e sem luz. Quando virava a esquina de um deles, dava de cara com uma mão que lhe acertava a testa. Estirado no chão, viu uma chave grande cair em um buraco e fazer um ensurdecedor barulho metálico. Aquele som o fez acordar suado e assustado.